quarta-feira, 18 de julho de 2012

Ana Maria Braga e o culto da individualidade.


Uma das maiores descobertas que tive esse ano foi me deparar, sem querer, com o disco intitulado Sou eu tendo como intérprete a famosa apresentadora global Ana Maria Braga. Esse álbum é composto por quinze faixas que trazem, em sua maioria, mensagens motivacionais narradas na voz da apresentadora e tendo de fundo tanto sons ambiente, como músicas de elevador, ou até mesmo merengues. 

Antes que questionem minha sanidade mental ou critiquem meu mau gosto, explico: não é a alta qualidade sonora e estética dessas faixas que me chamou a atenção e sim o conteúdo, ou seja, as analogias, as ideologias e os pressupostos contidos em cada uma delas. Digo isso porque, a meu ver, o conjunto dessas mensagens traz consigo uma espécie de manifesto político e sociológico da contemporaneidade, presente sobretudo nas sociedades americanas e europeias: o culto exacerbado da individualidade, refirmada pela identidade exclusiva e acoplada a necessidade imediata de ascensão social como símbolo de sucesso e status.

Sem dúvida a maior obra-prima desse álbum é a faixa onze intitulada Conselhos. Ela é a mensagem maior, a cereja do bolo. Não caberia aqui uma análise profunda dessas palavras tão diretamente proferidas e defendidas pela narradora: nela é possível estabelecer ligações teórico-metodológicas com o referências a Karl Marx, São Paulo de Tarso, Pierre Bourdieu, Nietzsche e sobretudo Max Weber além de ter como pano de fundo uma polêmica sobre darwinismo social. Um verdadeiro manifesto do modus operandi e do habitus dessa contemporaneidade, proferidas do ponto de vista diretamente do nativo. Consciente, assim, da minha incapacidade de uma análise séria que contemple a magnitude dessa obra, escolhi a faixa quinze (Sou eu) que além de finalizar e dar origem ao título desse álbum, também é capaz de resumir pontualmente os ideais que norteiam o restante das faixas.


Sou eu. Eu sempre fui assim.

Nessa primeira estrofe a cantora já delimita de maneira objetiva e determinista a sua individualidade: ela É e SEMPRE foi do jeito que se encontra. Isso aponta claramente para a impossibilidade de mudança, posto que a sua personalidade é determinada pelo que sempre foi e não pelo que virá a ser. Essa afirmação traz consigo subentendida a noção de determinismo biológico, ou seja, que as pessoas já nasceriam com as suas características ao invés de as adquirir socialmente. O ser humano seria um ente fechado em si mesmo e determinado pelo que considera que seja inato.

 Sou meu guia, meu caminho, eu sou dona de mim. Se sou feliz, é desse jeito.
Não é por obrigação é por direito! 

Aqui ela aponta que independe de outros seres humanos pra viver, que independe da vida social e de relações que interfiram na sua capacidade de ver o mundo: sendo dona de si mesma, é ela quem guia os seus próprios passos e trilha o seu próprio caminho. Não há necessidade de receber auxílio ou se informar dos resultados práticos de suas ações no contexto social, o que importa é a sua felicidade. Aqui se mostra um dos cumes da individualidade exacerbada presente na música: sabendo em si mesma o que deve ser feito sem se importar com os reflexos de suas ações, tudo pode ser justificado se for feito em nome da felicidade. Se ela é feliz sendo fechada em si mesma, ela tem o direito de ser assim. Nada a pode impedir de ser feliz, nem mesmo a desgraça alheia importa. Se ela sempre foi do jeito que é, aqui ela manifesta o desejo de nunca mudar, de permanecer consigo mesma e fazendo o que bem entender para ser feliz.

Sou eu, muito prazer. Olhar um livro aberto pra quem sabe me ler. 

Essa é uma das poucas referências que ela faz a outra pessoa além de si mesma e, mesmo assim, é apenas para se apresentar. Diria que o muito prazer traz em si uma certa dose de ironia, uma vez que ela não se apresenta para estabelecer uma relação e sim para se deixar ver, como um livro. Um livro exposto, aberto, mas não qualquer livro: um livro restrito a certas pessoas capazes de o ler. Essa é uma das características da individualidade exacerbada, a noção de exclusividade. Sendo um individuo único e exclusivo ela se poe na posição de um livro extramente interessante capaz de fazer saltar o interesse do público em geral em o conhecer.  
 O que eu já ri e o que já chorei pra aprender que ainda é pouco o que já sei.

Como é típico da individualidade exacerbada, esse trecho traz um pouco de modéstia, mesmo que falsa, para mostrar que além de única, exclusiva e extremamente interessante, ela é uma pessoa que mantém a humildade, isto é, não se deixa levar pelas inúmeras características que poderiam a tornar uma pessoa rude. Ela assume que ainda não sabe de tudo e que por isso muito sofreu. Reparem que esses são os únicos motivos de sua alegria e de sua tristeza: a falta de conhecimento próprio.

Flores na varanda, a lua sobre o mar, a vida convidando pra dançar.

Não há dúvida que aqui se encontra um evidente caso de antropocentrismo. Não bastasse ela ser fechada em si mesma para os outros seres humanos, ela também acredita que todo o mundo e o universo giram em sua volta. A existência tanto das flores como até mesmo da lua e do mar são um sinal da vida a convidando pra dançar, isto é, viver e ser feliz. Há um claro subjugamento da natureza e do cosmos em função da sua felicidade. Uma instrumentalização da natureza, julgada inferior, para saciar as vontades do ser humano.

No espelho uma menina, brincando de esconder. Se mostra e ri pra mim, quando me vê.

Obviamente não poderia faltar nesse culto ao eu uma referência ao espelho, símbolo maior do narcisismo presente nessa obra. Como alguém que cultua tão fiel e decididamente a sua individualidade, o espelho é a oportunidade de contemplar a si mesmo e ter a constatação empírica da sua exclusividade. É interessante perceber aqui a quantidade de referências a si mesmo em apenas poucas palavras: a menina no espelho obviamente é ela mesma (ideia que será retomada mais adiante) e sendo ela mesma ela se mostra e ri pra ela mesma quando vê ela mesma. A exacerbação da individualidade chega a um ponto que remete a certa esquizofrenia compulsiva pelo próprio corpo digna da madrasta de Branca de Neve.


Sou eu, quem mais podia ser? Deslumbrada, apaixonada pelo dom de viver. 

Novamente ela remete a sua individualidade exclusiva: tudo que foi dito até agora é vivenciado unicamente por ela e mais ninguém. Quem mais poderia ser assim a não ser ela? O tom de indagação retórica remete a uma obviedade a ser percebida pelo seu interlocutor. Sendo tudo o que é, exclusiva e individualmente, é apaixonada pela vida. A própria vida, é claro.

Se deus me deu, ah, ninguém me tira: nem inveja, nem maldade nem mentira.

Algo muito importante e esclarecedor pode ser analisado a partir desse trecho: a questão da determinação divina. Se desde o início ela ressalta que o seu jeito de ser, exclusivo, não é passível de mudança por ser eterno e contínuo desde o seu nascimento, aqui ela expõe que quem determinou isso foi deus. Desse modo, foi deus quem lhe deu tudo o que tem e tudo o que ela é, e nada é capaz de tirar isso dela. É aí que ela traz pela segunda e última vez uma referência a outras pessoas além dela: as que tem inveja, são más, mentem e querem destruir tudo o que ela é. Dito de outro modo, a cantora  seria boa, humilde e apaixonada pela vida por intermédio de deus sendo que o resto dos seres humanos seriam invejosos, maus e mentirosos buscando interferir na sua vida para a desgraça e a destruição da sua individualidade exclusiva e exemplar. 

Flores na varanda, a lua sobre o mar, a vida convidando pra dançar. No espelho essa menina, sorrindo para mim: sou eu, ah, eu sempre fui assim.

Após repetir o refrão antropocêntrico, ela então muda o trecho sobre o espelho e traz a tona o que já estava óbvio: a menina refletida é ela mesma e do jeito que ela sempre foi. É assim que, por fim, ela traz a última característica típica do individualismo exacerbado e narcisístico: a negação da velhice. Mesmo sendo uma idosa, a cantora afirma que ao olhar para o espelho vê uma menina e é isso que ela passa a buscar, ser efetivamente uma menina através da negação da maturidade tanto emocional como propriamente física na busca da juventude eterna, pois tendo a concepção que a juventude seria o ápice da vida, o auge da felicidade plena, ela tem que ser mantida custe o que custar.

Sou eu. Euzinha! Sou eu.