segunda-feira, 6 de junho de 2011

E por falar em machismo...


Antes da prometida continuidade à postagem de ontem, trago uma breve digressão (já que ontem falei sobre machismo...).

É uma propaganda da Sky, veiculada no intervalo do Globo Esporte (por que será?), cujo tratamento da mulher ocorre no patamar dos antigos anúncios das Panelas Panex ("um novo tipo de panela para um novo tipo de mulher"). E não me venham falar que é uma sátira ao machismo: é machismo puro. E, se alguem disser que o fato dela ter "erguido a voz" para pedir mais educação ao marido é expressão de autonomia feminina, estará tirando sarro da minha cara. Gisele Budchen (sei lá como se escreve) não só protagoniza uma típica Amélia-mulher-de-verdade-dona-de-casa, como também, em seguida, recebe uma ordem imperativa e grosseira do marido. Até que, por fim, é valorizada por seus atributos físicos (a velha objetificação feminina, em que a mulher tem o valor proporcional ao tamanho dos seios, pernas e nádegas) em uma cena digna de Pânico na TV!, o tipo ideal de machismo televisivo.




A pergunta que resta: onde está o CONAR (Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária) numa hora dessas?


Em tempo: lembrei-me que já escrevi outrora sobre o tema : clique aqui para visualizar (atualizado em 10/06 às 21h35)

domingo, 5 de junho de 2011

Mais uma vez, sobre Política e Religião (1)

Boa tarde, camaradas.

O debate político-filosófico é de fundamental importância nesses tempos polarizados que vivemos no Brasil. Na medida em que fortalecem-se, na sociedade, demandas de cunho liberal (no sentido cultural do termo), sai também do armário um contingente conservador e anti-laicista, em uma verdadeira reação às possibilidades de conquista dos grupos sociais "minoritários". Intesifica-se, assim, um debate de concepções sobre as relações entre Estado e cultura (mais especificamente, entre Estado e éticas religiosas) que, no mais das vezes, tem extrapolado os limites da argumentação lógica e filosófica e configurado-se em ofensa e intolerância. Para dialogar com meu colega da última postagem, vou me valer também de expoentes acadêmicos.

As discussões acerca do machismo e da homofobia - desde "sempre" presentes na sociedade ocidental, mas que ganham destaque frente às discussões políticas recentes - costumam ser analisadas ora à luz da laicidade do Estado, ora à luz da interpretação bíblica que, segundo alguns, fundamenta tal machismo e tal homofobia. Pessoalmente, penso que as duas dimensões da religião (uma propriamente religiosa e outra propriamente política) são indissociáveis, de forma que é justamente por uma construção consistente (nem sempre coerente) do discurso teológico que instituições religiosas agregam capital político e ganham força para manter a universalização de sua ética particular, ou seja, ganham força para continuar negando a laicidade do Estado.

No caso das concepções machistas e homofóbicas que vigoram, já há muito, no discurso de um cristianismo conservador, vale a pena refletir essas duas dimensões. Ou seja, vale a pena refletir, e criticar, tanto a interpretação teológica que produz essa concepção conservadora, quanto suas decorrências no debate político. Assim, ao invés de me debruçar sobre uma das dimensões, procurarei criticar a ambas.




A crítica religiosa

Alguns revoltosos em relação ao cristianismo conservador, que busca impor sua ética por força de lei, vêm realizando queima de Bíblias e utilizando o argumento de que "A Bíblia é homofóbica e machista". No limite, contudo, tais revoltosos utilizam exatamente o mesmo argumento dos cristãos fundamentalistas: o de que a submissão feminina e a privação de igualdade aos homossexuais têm pricípios bíblicos inequívocos. A diferença é que, para uns, a Bíblia deve se converter em lei, enquanto para outros deve ser ignorada (ou, no caso, queimada)*. Sobre a questão, meu argumento é o de que a homofobia e o machismo na Bíblia não são inequívocos e que a leitura bíblica contemporânea permite (não só permite, como efetivamente produz) conclusões diversas.


Bíblia homofóbica?

Em primeiro lugar, o argumento de certos cristãos de que a homossexualidade é "contra a natureza" é completamente falacioso. Toda a humanidade, enquanto construção cultural, faz-se na dominação da natureza. Toda religião, enquanto construção social, é contra a natureza, afinal. É da "natureza" humana ser "contra a natureza". Tal argumento, aliás, nem é propriamente bíblico, mas achei que valia a pena mencioná-lo.

Em segundo lugar a Bíblia é composta de 73 livros que, por serem de autores diferentes e tendo sido escritos em tempos diferentes (entre +/- 800 a.C e 100 d.C.), muitas vezes expressa visões de mundo distintas entre si (um dos muitos exemplos: Paulo, em Fl 1, 18-19, enfatiza que a fé basta para a salvação; Tiago, em Tg 2,14-26, diz que a fé sem obras é morta). Há poucos momentos em que a homossexualidade é abordada, o que ocorre nos livros do pentateuco (Lv 18,22 e 20,13), a Torá judaica, bastante questionada por Jesus, e em alguns momentos das cartas de Paulo(o mais radical dos líderes cristãos da Igreja Primitiva), como em 1Cor 6,10. O tema, assim, é bastante lateral nas escrituras como um todo, sendo ausente, inclusive, dos Evangelhos, o "coração" da Bíblia.

Em terceiro lugar, os Evangelhos trazem Cristo tratando o amor universal como ensinamento principal. Sempre que Jesus necessita sintetizar seus ensinamentos, fala em "amar ao próximo como a si" ou "amar ao próximo como eu vos amo", etc. (Mt 5,44; Mc 12,33; Lc 6,27 e 6,35; Jo 13,34 e 15,12-17). E o exemplo mais vivo é com a adúltera reprimida pelos religiosos da época e acolhida por Cristo (Jo 8, 1-10). Madalena, mesmo tendo agido em desconformidade com os ensinamentos divinos, é tratada com dignidade por Cristo. Neste caso, para Cristo, mesmo aquele que não está cumprindo a lei de Deus, ou quiça nem acredita nela, não é merecedor de violência. Com a Parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-36), Cristo não só mostra que o tratamento digno do outro deve transpor fronteiras étnicas e culturais, como também denuncia a hipocrisia religiosa de seu tempo (o sacerdote passa perto do sujeito que sofre e não o ajuda). Por fim, relembro o famoso "oferecer a outra face" (Lc 6,29), uma imagem que aparenta submissão, mas que é um forte exemplo do princípio cristão da não-violência.

Em suma, ainda que em certos momentos alguns personagens bíblicos (não o principal) recomendem a relação heterossexual, a questão da homossexualidade não pode ser tratada como inequívoca na Bíblia, uma vez que aparece muito lateralmente e por poucos personagens. Ademais, e o mais importante, ainda que se leia inequivocamente que a Bíblia, como um todo, recomenda a heterossexualidade, não é possível lê-la como homofóbica, dado que homofobia supõe violência, desrespeito, desamor, rebaixamento da dignidade humana, enfim, a degradação humana do outro. Os Evangelhos, referência principal do cristianismo, acentuam o imperativo ético do amor universal; pregam o reconhecimento da dignidade humana mesmo daquele que não segue as leis de Deus; e defendem o princípio da não-violência. A Bíblia, assim, não é, em si, homofóbica, mas passagens isoladas de seus contextos (internos e externos) podem ser apropriadas em favor da homofobia.



Bíblia machista?

Gastarei menos tinta com esse argumento. Se analisarmos a Bíblia com base no conceito de machismo, exterior a ela, É CLARO QUE A BÍBLIA É MACHISTA. Toda ela foi escrita no contexto de uma sociedade patriarcal, de clara dominação masculina. O termo "machismo", aliás, é recente bem como a contestação massiva dessa dominação. É completamente anacrônico aplicar o termo "machista" para analisar um livro de uma época em que o questionamento da dominação masculina não estava na ordem do dia. Se assim for, Sócrates, Platão, Marx e tantos outros também são machistas, porque se enquadravam na cultura de aceitação não-questionada da dominação masculina. Da mesma forma, Caio Prado Jr. (em sua juventude) e Domingo Faustino Sarmiento, dois dos principais pensadores da América Latina, seriam profundamente racistas, uma vez que possuem escritos que ratificam os argumentos da dominação branca sobre os negros. Vamos, assim, desprezar todos esses escritos? Tais conclusões se baseiam em uma leitura completamente anacrônica, aplicando um conceito recente a uma realidade antiga.

Em síntese, enfatizo que essa questão não estava colocada por aquela sociedade. Contudo, em uma sociedade em que o modelo tradicional de relação entre homem e mulher vem sendo questionado, uma exegese cristã deve pensar o contexto dos escritos bíblicos e os princípios inerentes aos ensinamentos, para então atualizar as ações. Repetir, sem reflexão exegética, as ações do passado é fundamentalismo. Vale ressaltar que o princípio da não-violência e do reconhecimento da dignidade do outro, que ressaltei ao falar da homofobia, é certamente aplicável também às mulheres (e o próprio exemplo que dei do Evangelho se trata de uma mulher) de forma que não está na Bíblia, em hipótese alguma, a violência machista.




A crítica política do conservadorismo religioso ficará para a próxima postagem. Agradeço muito meu camarada Adriano Godoy por levantar esse debate tão relevante na atualidade brasileira, tendo me inspirado a continuá-lo.

Abraços,

Enrico


*Atualizado em 06/06 às 09h50

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Política e Religião

Sim, meus caros, resolvi dar uma pausa em tudo aquilo que não deveria ser pausado e escrever aqui. Foram muitos e muitos os assuntos com potência de abordagem por este blog nos últimos meses (do bin Laden a Belo Monte passando pelo Egito). Porém, também são muitas e muitas as obrigações a serem executadas pelos moradores deste Beco e, infelizmente, pouco tempo nos resta para escrever algo que valha a pena ser lido.

Mesmo com a incerteza de que aquilo que eu escreverei valerá a pena ser lido, acabo de me lançar esse desafio. Ressalto, mais uma vez, que a falta de tempo implicará em um texto não revisado e escrito diretamente nessa plataforma. O que não significa que vocês não devam me criticar, pelo contrário. Feita a mea culpa e finda as parcimônias, vamos ao que interessa.

Esse texto deriva diretamente de outras publicações deste mesmo blog. Se for possível (re) leiam:
- O excelente texto de Enrico Bueno
- A série fuleira sobre religião, mas feita com boa vontade, desse que vos escreve

Escrevo em grande parte influenciado também por uma de minhas leituras acadêmicas. Pois é! Em meio a diagramas de parentesco e análises de ritos corporais, a gente também vê política em antropologia! Desculpem os politólogos e sociólogos que me leem dos absurdos que poderei falar.

O livro que me refiro foi fruto de um encontro promovido em 2004 entre, pasmem, Jurgen Haberbas e Joseph Ratzinger. Reunindo o filósofo do direito e o futuro papa frente a frente foi lançada a questão: "qual o lugar da religião no mundo contemporâneo?"


E por que cargas d'agua eu to falando sobre isso? Dado os rumos que temos acompanhado na cena política do país, essa questão se mostra mais que atual e pra mim imprenscindível de ser discutida.

Esses quatro assuntos, dentre outros, tem dominado os noticiários nada imparciais de nossos meios de comunicação e sucitado um amplo debate que, em linhas gerais, tem apontado tanto para um grupo dito conservador de um lado quanto para um grupo dito secular de outro. Continuando a generalização, de perspectiva oposta os conservadores são geralmente tidos como "religiosos/irracionais/moralistas" enquanto os seculares como "revolucionários/progressistas/drogados".

1) Como pudemos ver o kit anti-homofobia, chamado propositalmente de kit-gay, foi duramente criticado pela bancada evangélica até ser recolhido pela presidente(a) Dilma. O discurso senso comum propagado foi de que os evangélicos venceram os gays.
2) Por outro lado, o STF alguns dias antes aprovou a união estável entre homossexuais mesmo com duras críticas da CNBB. O senso comum apontou uma vitória dos "gays".
3) Em meio a tudo isso era organizada a marcha da maconha que, pela justificativa de apologia, resultou em pancadaria por parte da polícia. Vitória conservadora?
4) Os "cristãos", insatisfeitos com tudo isso, organizam agora uma marcha contra o kit, o casamento gay e a maconha.

Quero chamar a atenção para o discurso que tem se formado sobre isso. De um lado os religiosos tem acusado o governo de tomar bandeira contra questões de cunho moral enquanto os seculares tem exigido que os cristãos não se manifestem politicamente, sob a justificativa do Estado laico. É aí que o livro entra: para ele os dois lados estão errados.

Mais uma vez pasmem: a crítica maior do Papa é feita aos religiosos enquanto para Habermas o problema são os seculares. É a fé de Habermas e a descrença de Ratzinger. Já explico, mas antes cito.

"Em seu papel de cidadãos, os secularizados não podem contestar o potencial de verdade das visões religiosas (...) Os filósofos devem ouvir os representantes das religiões, pois eles tem muito a nos ensinar (...) O Estado não pode negar aos cidadãos religiosos o seu direito de contribuir nos debates públicos nos seus próprios termos" - Jurgen Habermas


É isso mesmo, o filósofo frankfurtiano defende que o discurso religioso é tão válido quanto o filosófico e por isso deve ser sempre respeitado. Com uma concepção que a democracia se faz na esfera pública, no diálogo, quanto mais plural e divergente forem as opiniões expressadas mais consolidada será.

"O terror se nutre pela moral. Se a religião também se nutrir torna-se um poder arcaico e perigoso que constrói falsos universalismos. (...) A religião é repleta de patologias e cabe ao direito e a razão purificá-la de seus vícios" Joseph Ratzinger

Sim, o futuro papa defende aqui uma religião tutelada pela razão para que não tenha tendências fundamentalistas e se afaste da moral e da pretensão universalista. Citando de Heidegger a Levi-Strauss ele demonstra como a naturalização da religião é perigosa e o direito é fundamental em uma sociedade democrática. Do mesmo modo, a ciência por sí teria alto poder de destruição e caberia a religião não deixar isso acontecer.

Divergindo em questões pontuais, porém, ambos os autores chegam amistosamente a conclusões bastante similares que, de maneira porca, pretenciosa e empobrecedora falarei agora.

Estes dois grandes pensadores da atualidade defendem sim uma participação dos religosos na esfera pública sem nenhum tipo de retalhação, constrangimento ou preconceito. O homem religioso em um estado democrático deve ter exatamente os mesmos direitos do homem secular.

Ora - você pode me dizer - então tanto o Papa como Habermas não concordam com o Estado laico? - Eu te digo: Estado laico não é Estado antirreligoso cara pálida.

O que ambos defendem é que a esfera pública tem uma lógica por si que legitima ou deslegitima os discursos postos. E essa esfera deve ser laica do mesmo modo que não deve ter uma ideologia dominante. Já aqueles que discursam, pelo contrário, devem ter um posicionamento religoso/ideológico/filosófico.

Exemplificando: nessa lógica tanto o Bolsonaro como o Malafaia estão absurdamente equivocados em usar uma linguagem com pressupostos morais na discussão sobre o kit. Já o STF teria agido com grande senso democrático ao convidar tanto a CNBB quando ao movimento LGBT a se expressar, na esfera pública e nos termos juridicos, sobre o casamento homoafetivo. Quanto a Marcha da Maconha e a Marcha Cristã, ambas como expressão ideológica de uma posição política, são extremamente legítimas e democráticas nessa esfera pública. O problema aqui, contraditoriamente, é o Estado brasileiro que usando da Polícia, com coerção física e moral, impede a plena realização da esfera pública.

A discussão sobre quem pode e quem não pode se manifestar que predmonia hoje tanto no senso comum como na imprensa não faz sentido já que em um Estado democrático como o brasileiro TODOS tem o DIREITO e eu diria o DEVER de manifestar suas posições ideológicas e políticas. A questão nodal, perdida nessa neblina de preconceitos, é de que o meio como essas posições são manifestas é que deve ser discutido.

Tratando-se de democracia você pode defender o que quiser se respeitar os meios de defesa.

ps: que venham os empiristas me tirar do mundo das ideias.